Opinião | Não existe imunidade, nem graça: a lei é para todos, até para piadas o6x3k

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Quando alguém faz pouco das emulações culturais de uma cidade como Blumenau, ridicularizando ou questionando de um jeito que diminui as práticas, reproduções geracionais, receitas e rostos que, para os locais, possuem um sentimento especial, a comunidade inteira se apressa em condenar. Aconteceu um tanto disso com a humorista alemã Lea Maria Jahn. Ela esteve no Vale do Itajaí há algum tempo para uma turnê e aproveitou para comparar a vida original no velho continente com as coisas da terrinha de Cabral. Não teve graça para muitos blumenauenses que, ao seu jeito, polemizaram nas redes sociais. 6r571d

Mas o realmente execrável esteve presente em outras situações. Deve ter sentido uma ironia amarga quando alguém perguntou para Lea Maria “em que campo de concentração” ela havia “encontrado” seu produtor, um homem negro. Ali estava a mulher, uma comediante nascida e educada na Alemanha – terra que aprendeu na marra o preço das palavras -, presenciando uma dessas pérolas tupiniquins que nos fazem questionar se a abolição realmente aconteceu ou se foi apenas uma mudança de endereço.

Para Lea Maria, criada num país onde fazer apologia ao nazismo pode render alguns anos refletindo sobre a vida numa cela, a situação deve ter soado como uma dessas piadas que só têm graça para quem não é o alvo. Na Alemanha, não existe essa história de “relaxa, é só humor” quando se trata de dignidade humana. Lá, racismo e discurso de ódio são crimes hediondos, ponto final. Não há papo furado sobre “liberdade artística” quando o assunto é humilhar minorias.

A evolução de um povo demora a chegar em alguns cantos do planeta. Aqui, no Brasil, parece que as leis chegaram antes que, coletivamente, a consciência encontre o caminho da correção de comportamentos errados. Quando a juíza Bárbara de Lima Iseppi teve a audácia de aplicar a lei brasileira e condenar o humorista Leo Lins por racismo, boa parte do mundo artístico reagiu como se ela tivesse inventado o crime de racismo numa terça-feira qualquer. Como se a magistrada fosse uma espécie de ditadora togada perseguindo pobres comediantes que só queriam arrancar umas risadinhas inocentes.

O mais fascinante é que a decisão da juíza representa algo absolutamente inédito no Brasil: um caso em que alguém foi efetivamente punido por racismo. Porque, como bem demonstra Fernando Nascimento dos Santos em seu livro “Regime de Verdade Judicial sobre os Corpos Negros”, o padrão do nosso sistema judiciário é bem diferente. Faço minhas as palavras do autor, que aponta que “a utilização de expressões altamente pejorativas associadas ao negro” raramente é considerada suficiente para demonstrar intenção preconceituosa, mesmo quando tribunais reconhecem os “xingamentos utilizados” como racistas.

É uma realidade constrangedora para qualquer jurista brasileiro: o exercício da atividade desenvolveu uma impressionante capacidade de reconhecer racismo sem punir racistas. É como um mágico às avessas – em vez de fazer algo complexo aparecer do nada, faz algo óbvio desaparecer na cartola jurídica. No livro, Dos Santos fala sobre isso. O pesquisador mostra que magistrados frequentemente se valem de “argumentos variados” para afastar “o intuito racista”, mesmo quando as ofensas são explícitas.

E aqui reside uma das maiores ironias do nosso sistema de justiça: é mais fácil conseguir uma condenação por maus-tratos a animais do que por racismo contra humanos. Maltrate um cachorro e verá como a lei funciona rapidinho. Mas humilhe sistematicamente pessoas negras, gays, deficientes, mulheres ou moradores de rua, e de repente todo mundo vira especialista em “contexto”, “intenção” e “liberdade de expressão”.

É como uma blindagem para racistas – sejam piadistas, atores ou de cara limpa. Eu diria até que, daqui a um tempo, é possível que nossos parlamentares proponham uma lei para racista acidental ou inconsciente. Sabe aquele que estava distraído, fazendo gracejos e tropeçou numa ofensa ao outro? Ou então, coitado, sem querer humilhou a condição de amar de um coleguinha? Estes, para muitos brasileiros, merecem perdão judicial. Uma espécie de terraplanismo jurídico.

Imagine se aplicássemos essa lógica a outros crimes. “Meritíssimo, meu cliente até matou, mas não teve a intenção específica de matar, apenas de perfurar alguns órgãos vitais.” Ou: “Doutor juiz, ele até roubou o banco, mas foi sem dolo específico de apropriação, apenas uma redistribuição espontânea de renda.”

Por isso a condenação de Leo Lins causou tanto rebuliço. Não porque a decisão seja exagerada – e ela não é -, mas porque é rara. Estamos diante de um ponto fora da curva estatística, um cisne negro do direito antirracismo brasileiro. Uma juíza que teve a ousadia de ler a lei, analisar os fatos e aplicar a legislação sem fazer malabarismos interpretativos para livrar a cara do réu.

E aí vem a deputada Caroline de Toni – a mesma que quer censurar professores e patrulhar salas de aula – se apresentando como a grande defensora da liberdade dos humoristas. A ironia é tão grossa que daria para fatiar e servir no café da manhã. A catarinense Caroline quer alterar a lei antirracismo para criar uma espécie de “zona franca da discriminação” para artistas. Porque, na lógica dela, para as piadas ficarem mais “fortes”, as vítimas precisam ficar mais vulneráveis.

Faço questão de voltar ao que escreveu Fernando Nascimento dos Santos no seu livro: vivemos a “naturalização do privilégio branco e da exclusão do negro”. Para que alguns tenham direito de fazer piada, outros precisam abrir mão do direito à dignidade. É uma barganha onde sempre os mesmos pagam a conta do entretenimento alheio.

Pois bem, sejamos diretos: não existe isso de “humor livre de responsabilização”. Todo discurso tem consequências, toda palavra carrega peso, toda piada escolhe seus alvos. A diferença é que agora – pela primeira vez em décadas – alguém foi obrigado a arcar com as consequências legais de transformar preconceito em produto de entretenimento.

O que incomoda não é a decisão da juíza, mas o que ela representa: o fim de uma impunidade histórica. O fim de uma época dourada em que “é só uma piada” funcionava como escudo contra qualquer barbaridade. O fim do privilégio de humilhar sem responder por isso.

Leo Lins que pergunte à Lea Maria Jahn: na Alemanha, alguém riria das piadas que ele faz? Não! E por uma razão muito simples: eles sabem que alguns shows são de horror e custam caro demais para uma sociedade que se pretende civilizada. A lei existe para ser cumprida, não para ser transformada em piada. Porém, quando isso finalmente acontece, aplicada com todo o rigor desejado pelo legislador que a escreveu, não faltam especialistas em liberdade de expressão saindo da toca para explicar por que dessa vez foi “exagero”.

Engraçado como funciona este nosso tempo: maltratar um animal dá cadeia na hora. Mas fazer de um grupo de humanos um bando de animais maltratados sempre dá margem para uma discussão filosófica sobre os limites da arte. Essa é a piada que realmente não tem graça.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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